Praxador antes do tempo


(...) Nunca tive problema algum com as praxes e inclusivamente mudava-me da situação de praxado para a de praxador, até que um dia a coisa me correu menos bem.

Os cadetes do meu curso viviam numas camaratas relativamente perto do refeitório.

Depois de jantar com os colegas que normalmente estavam na minha mesa, saía do refeitório e, sem que ninguém reparasse, afastava-me um pouco do grupo e atrasava-me deliberadamente.

Ao passar junto da janela de uma das camaratas entrava sem grande esforço, pois as janelas eram baixas e normalmente estavam semiabertas, e depois de ter verificado que não estava nenhum camarada nas redondezas, virava as camas que estavam religiosamente bem feitas de pernas para o ar. Abanava os armários para que nada ficasse de pé e saía como se nada tivesse acontecido.

Nunca contava nada a ninguém para não estar sujeito a denúncias. Estas operações duravam dois a três minutos.

Voltava a saltar pela janela, dava uma pequena corrida e encontrava-me de novo com os outros camaradas. Por vezes estavam relativamente perto, em frente às camaratas dos cadetes do curso, a conversarem sobre o dia a dia.

No dia seguinte aos meus rides relâmpagos era usual alguém comentar na esquadra de voo:

"Ontem, os alunos mais velhos, viram-nos as camas outra vez. Já não basta as sessões que temos à noite e ainda temos de fazer as camas duas ou três vezes durante o dia."

Não me manifestava mas achava aquilo muito engraçado.

Um dia as coisas não me correram como eu tinha planeado e fui apanhado pelos alunos mais velhos e por um instrutor de T-37.

Foi uma noite muito complicada. Acho que paguei por tudo o que fiz com juros elevadíssimos.

Prenderam-me na camarata, fiquei refém de todos, camaradas de curso, alunos mais velhos e instrutores, e fui praxado toda a noite sozinho.

Quando fui apanhado deveriam ser sete da tarde e só voltei para a minha camarata por volta da uma da manhã.

Os meus camaradas alunos não sabiam o que me tinha acontecido nem onde me encontrava. Depois de verem o meu estado, meio nu, com a roupa debaixo do braço, a cara e praticamente todo o corpo pintado de graxa preta, questionaram-me sobre o que aconteceu e onde tinha estado todo aquele tempo.

Depois de lhes contar o que aconteceu na íntegra, contei-lhes também a razão e aí todos entenderam que o procedimento que utilizaram foi o mais adequado. Eu também concordei com a praxadela mas não deveria ter sido apanhado.

"Este número de ser praxador antes de tempo, tem que se lhe diga" - murmurei interiormente.

Nesses momentos de convívio travaram-se conhecimentos para a vida.

Se exceptuarmos alguns casos de pouco jeito para a praxe, esses momentos ainda são relembrados  com alguma graça e sempre no sentido de lhes atribuir alguma importância no contacto entre seres humanos que tinham objectivos comuns, quer profissionais quer de amizade, que muita falta fariam em combate. (...)
(extracto de um texto publicado em Aviação na minha história)
Carlos Soares
#Penduras
[0.007/2018]

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