A história perdura, apesar dos caminhos sinuosos
Almoço comemorativo do 52º aniversário de "os Coriscos" (P1/70) |
Hoje fui convidado, como participante especial, pelo meu famoso instrutor de ALIII (2 dias), Sarg. Bandeira, para o almoço do seu curso (os Coriscos - P1/70).
Deixo uma história passada com ele há quarenta e oito anos:
Se em Sintra tive inicialmente um instrutor muito acelerado,
em Tancos no ALIII, também tive um que não lhe ficava a dever nada.
Ao segundo voo de helicóptero, o meu instrutor decidiu que
eu deveria fazer reduções de velocidade de 80 para 60 Kts sem perder ou ganhar
altitude.
Como isso não era uma manobra muito singular para um
principiante, a exactidão que ele pretendia não foi bem executada.
Estando a voar de Tancos para Santarém e com mais 3 alunos -
inicialmente andávamos sempre quatro alunos no ALIII - entendeu o Bandeira, assim
se chamava o instrutor, que eu deveria ficar de castigo numa ilha do Tejo em
frente a Santarém.
Sempre com as suas botas cardadas, pouco próprias para
pilotar qualquer tipo de aeronave, em cima do pedestal central e as mãos nos
cintos de segurança, com os óculos escuros Ray Ban, modelo standard dos pilotos daquele
tempo, bigode de alentejano alourado quase totalmente pelo fumo do cigarro e com pouco cabelo, dizia ele com ar de ser o dono e senhor do mundo:
“Ó Sr. Soares, você não tem muito jeito para isto e,
portanto, vai ficar aqui a meditar no meio do Tejo. A meditação vai-lhe
fazer bem. Não se esqueça de ir treinando a manobra de redução de velocidade de
80 para 60 sem perder ou ganhar altitude. É simples. Vá falando na manobra e no
seu procedimento, quantas vezes for necessário, até ficar a saber isso bem.”
-Sim Sr. instrutor, retorqui, não acreditando que ele me ia
deixar no meio da ilha.
Enquanto isto, pegou no comando do ALIII, tirou as botas
cardadas de cima do painel e disse que o helicóptero era dele. Esta expressão
servia para a passagem dos controlos de um piloto para o outro.
Aterrou na ilhota de areia, esticou-se por cima de mim,
abriu a porta do meu lado e gesticulou para que me fosse embora. Os outros
colegas estavam mais atónitos do que eu. Saí do ALIII e, ainda à porta, ouvi-o
dizer meio a gritar, porque o ruído não o deixava falar normalmente:
“Se por acaso eu não vier buscá-lo daqui a duas horas, vá à
boleia.”
Disse-o com ar de poucos amigos.
Afastei-me ligeiramente da direcção das pás do rotor
principal e ele saiu a voar bem baixo, junto à água. Ainda pensei que
voltasse cinco minutos depois, mas enganei-me. O helicóptero afastou-se rio
acima em direcção à Chamusca e, algum tempo depois, deixei de ver o ALIII e de
ouvir o seu som característico.
Era Verão e as temperaturas rondavam os 32º. Como usual,
tinha um fato de voo vestido e aquele tecido não era propriamente preparado
para ir a banhos no Tejo.
A ilha era pouco maior do que o espaço ocupado pelo rotor de
ALIII.
Sentei-me junto à água e tirei as botas de voo. Essas sim
eram de voo pois os alunos não podiam andar com outro tipo de equipamento. Abri
o fato de voo até à cintura, baixei-me e com as mãos apanhei um bocado de água
do Tejo. Levei a água ao rosto para refrescar e fiquei a meditar na minha vida.
Tinha acabado de começar o curso e nem imaginava no que me
estava a acontecer. Seria que aquilo era assim tão simples e não tinha jeito
para aquele tipo de voo? - Pensava eu meio desiludido com a minha performance.
Passaram trinta minutos da minha chegada á mini ilha e o
ruído da máquina não se fazia ouvir.
Ainda quatro ou cinco semanas antes, tinha estado no Tejo em
frente a Santarém a tomar banho, na primeira viagem que fizemos para Tancos,
mas não imaginava que voltaria a banhos de rio tão depressa e de uma forma tão pouco
ortodoxa.
Penduras do PH1/74 a banhos no Tejo |
Uma hora depois da aterragem à beira-rio, com vista
maravilhosa para Santarém e para a ponte, comecei a pensar que, se calhar,
aquela conversa de ir à boleia não ficava muito fora do contexto. O problema era
o facto de não passarem barcos.
Com vinte anos não há stress a as praxes tinham-me ajudado a
ter calma perante este tipo de situações.
Dentro de um ALIII, com esse instrutor, era normal andarem
quatro alunos. Cada aluno fazia cerca de uma hora e eu não tinha chegado a
terminar a minha.
Seria que ele me viria buscar depois de terminar o treino com os
outros?
Falava em voz baixa. Já começava a falar sozinho. O calor era abrasador e não podia despir-me para tomar banho mesmo com tanta água por perto não fosse o ALIII aparecer e estar em trajes menores.
Aí é que a minha vida
andaria muito mal.
Duas horas exactas após a aterragem, o Sarg. Bandeira num
momento perdulário, decidiu vir buscar-me à ilha deserta onde me tinha abandonado
aos meus pensamentos nas últimas duas horas.
Assim que ouvi o helicóptero calcei, com os pés cheios de areia, as botas à pressa, apertei o fato de voo e levantei-me. Não havia tempo a perder,
nem queria dar a entender que, mais ou menos, me tinha refrescado.
O ALIII, fez um reduzido circuito de aproximação, e quando
estava quase a aterrar, não o fez no sítio mais lógico, nem de imediato.
O meu instrutor demonstrou-me as suas capacidades de
controlo junto ao chão. Voou o ALIII a cerca de cinquenta centímetros do chão e
veio na minha direcção.
Com a aproximação do aparelho fui andando para trás, de
costas para a água e de frente para o helicóptero. Continuou a voar o ALIII na
minha direcção e fui recuando até ficar dentro de água. Fiquei com água pelos
joelhos e com as botas cheias de água. Se soubesse não as tinha calçado. Quando
isto aconteceu, ele recuou o helicóptero, sorriu e aterrou. Fez-me um sinal
para entrar a bordo, desta vez para o banco de trás.
No lugar de trás estava o Tó Gomes. Olhou para mim, estupefacto,
e fez sinal com o polegar de que estava tudo bem.
Fomos para a Base. Depois de aterrar e rolar para o
estacionamento, o aluno que ia à frente cortou o motor e parou as pás do rotor
principal, o que era sinal para sair do helicóptero. O instrutor e os dois
alunos da frente ficaram a preencher os livros de registo e o Tó Gomes e eu saímos
do ALIII.
O banco traseiro do helicóptero, quando não tinha peso em
cima, recolhia através de umas molas. Era necessário segurar o banco para não
fazer barulho. Eu já estava fora e o Tó Gomes saiu, mas esqueceu-se de segurar
o banco. Deu-se o estrondo normal de chapa a bater em chapa. O Sarg. Bandeira
ouviu aquilo muito incomodado e saiu a correr do ALIII a perseguir o Tó Gomes
que se pôs a correr em direção ao Hangar.
O cenário era deveras hilariante e eu já estava mais
descansado porque, pelos vistos, não era único no alvo da sua descompressão. O
instrutor corria montado nas suas botas cardadas que não davam jeito para o meio-fundo e gritava:
“Você está f…. comigo. Venha cá porque temos de acertar as
contas. Você vem para aqui com óculos escuros, armado em cagão, mas comigo está
f…”
Como eu já estava fora do alcance da sua vista, desatei a
rir à gargalhada e a olhar para os outros dois colegas que ainda estavam dentro
do ALIII. Não conseguia parar de rir num misto de diversão e histerismo. O Sarg.
Bandeira voltou ao ALIII e viu-me nesses propósitos.
Disse com cara de poucos amigos:
“Ouça lá, aqueles dois que estão dentro do helicóptero vão
passar no curso, mas você e o Sr. Tó Gomes vão-se f…. comigo, porque vão
chumbar.”
Era a segunda missão que fazíamos no curso.
Mais tarde nesse dia as coisas ficaram mais calmas e todos
estes cenários faziam já parte de uma aprendizagem sui generis nos dias que
correm, mas que naquela época era normal. Como não conhecíamos outros métodos
pensámos ser este o mais propício para a nossa formação.
Diga-se, em abono da verdade, que o Sarg. Bandeira era, ao
estilo que mais tarde foi utilizado pelo coronel de cavalaria do Apocalypse
Now (e juro nunca ter informado Coppola sobre estas peripécias) apesar disso, um
excelente homem.
Nunca mais tivemos problemas com ele, provavelmente devido ao facto de ter mudado de instrutor. Entretanto, chegaram à Esquadra
mais pilotos para darem instrução.
Com esta história deixo o agradecimento pelo convite e um grande abraço aos os Coriscos pelo seu 52º aniversário.
#Penduras
[0.010/2023]
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