Um não sei quê do voo suave dentro do meu ser
Pedem-me uma
carta de despedida que não escreverei porque, entre nós, as despedidas nunca
são mais do que um “até já”.
Como disse a
Catarina, esta cerimónia é uma celebração da vida.
Primeiro
quero saudar a Ana, tua companheira de vida, a Filipa, a Catarina, que me está
a dar voz, e as tuas netas queridas que vão estranhar a falta do mimo físico
que lhes dás.
Todas
mulheres valentes a quem dedicaste a vida e que a ti se dedicaram.
Quero-te
fazer saber que não estou mandatado pelos Penduras para falar em seu nome, mas
adivinho sentirem-se representados nesta missiva pessoal. Todos estão presentes
mesmo os que, como eu, não estejam fisicamente nesta sala. A vida mantém-nos
unidos embora nos separe o curso de viver.
Não rachou e
estarás sempre connosco.
Meu caro
António Carneiro,
Sei que o
António Gomes de Almeida, o Toni, que se antecipou a ti há cinco meses, já te
recebeu com um daqueles abraços vigorosos que sempre damos quando os Penduras
tocam a reunir. Dá-lhe um abraço por nós.
Serei
conciso, como sabes ser meu costume, e não te enfadarei com os elogios de que
sempre prescindiste como é o hábito dos íntegros, honestos, sagazes, valorosos,
destemidos, dedicados, competentes e exemplares, nem te farei perder tempo com
a necessidade de expressar a minha amizade por ela ser patente há quarenta e
oito anos.
Escrevo-te
somente para te agradecer a partilha de uma vida de camaradagem e cumplicidade,
nas presenças e nas ausências mesmo quando os rumos seguidos por cada um dos
Penduras pareceu manobra de evasão e tu sempre garantiste que nenhum à tua asa
se despenhasse.
Disse tudo.
Deixo-te com
Pessoa, esse maçador deprimido que legou o génio de escrever a quem, como eu,
não tem a sabedoria de o fazer:
“Ah, quanta vez na hora suave em que não me esqueço,
vejo passar o vôo de ave e me entristeço!
Porque é ligeiro, leve, certo, no ar de amavio?
Porque vai sob o céu aberto sem um desvio?
Porque ter asas simboliza a liberdade que a vida
nega e a alma precisa?
Sei que me invade um horror de me ter, que cobre
como uma cheia meu coração, e entorna sobre a minha, alma alheia.
Um desejo, não de ser ave, mas de poder ter não sei quê do
voo suave dentro do meu ser.”
Olha por
nós
2022.07.18
(o texto
adaptado é do Cancioneiro de Fernando Pessoa)
#Penduras
[0.011/2022]
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